Entenda como a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada para responsabilizar os sócios ou administradores de empresas.
Por Kaio Alves Paiva.
A desconsideração da personalidade jurídica é um tema que tem gerado grande discussão no âmbito jurídico.
Existem duas teorias que procuram orientar o afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para estender os efeitos das suas obrigações às pessoas dos sócios ou administradores. São chamadas de "teoria menor" e "teoria maior" da desconsideração da personalidade jurídica.
A teoria maior condiciona o afastamento da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva da pessoa jurídica e exige, portanto, além da prova da insolvência, a demonstração de desvio de finalidade (teoria maior subjetiva) ou de confusão patrimonial (teoria maior objetiva).
Já a teoria menor, por outro lado, é aquela que se refere à desconsideração em toda e qualquer hipótese de execução do patrimônio do sócio por obrigação da empresa, bastando a prova da insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.
A seguir, algumas hipóteses de aplicação de ambas as teorias a fim de entender suas nuances, aplicabilidade prática, consequências e cuidados que inspiram.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), no § 5º do art. 28, adota a chamada "teoria menor", ao que basta para sua aplicação que a pessoa jurídica seja obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados ao consumidor. Eis a letra da lei: "§ 5º - Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores".
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se posicionou a favor da aplicação da teoria menor em um caso de execução de dívida de uma construtora com um consumidor. No entendimento do relator, o fato de a empresa ter se tornado insolvente e a impossibilidade de pagamento da dívida pelos meios tradicionais já são suficientes para justificar a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilização dos sócios da empresa pelo débito em execução (STJ - REsp: 1862557 DF 2020/0040079-6, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 21/06/2021).
Igualmente, a Justiça do Trabalho tem se posicionado pela aplicação da teoria menor. De acordo com recente entendimento do Tribunal Superior do Trabalho (TST) no que toca à desconsideração da personalidade jurídica, não há necessidade de se comprovar desvio de finalidade ou confusão patrimonial para que se proceda a superação da personalidade, bastando tão-só a insolvência da pessoa jurídica ou insuficiência de seus bens para que se permita a execução dos bens do sócio, aplicando às relações de trabalho o previsto no art. 28, § 5º, do CDC por analogia. (TST - Ag: 10011219820185020401, Rel. Alexandre Luiz Ramos, 4ª T., Data de Publicação: 24/06/2022).
Também em questões ambientais, por força do art. 4º da Lei 9.605/98, conhecida como Lei de Crimes Ambientais, adotou-se a "teoria menor", de sorte que "poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente".
Portanto, em casos proteção de interesses vulneráveis, como envolve as relações de consumo, trabalhistas e questões ambientais, têm se aplicado a "teoria menor" como meio de garantir maior proteção a esses interesses, pela facilidade de responsabilização dos sócios da pessoa jurídica, permitindo que os seus bens pessoais sejam utilizados para quitar as dívidas da pessoa jurídica.
Por outro lado, em se tratando de relações contratuais comuns, o entendimento consolidado do STJ estabelece que a desconsideração da personalidade jurídica retrata medida excepcional, aplicável somente quando há prova inequívoca de abuso da personalidade jurídica, mediante desvio de finalidade ou confusão patrimonial, em detrimento dos credores. Nesses casos, a simples alegação de insolvência da empresa devedora não é suficiente para justificar a medida de desconsideração (STJ - REsp: 1729554/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., DJe 06/06/2018 e EREsp: 1306553/SC, Rel. Minª. Maria Isabel Gallotti, DJ 16/04/2013).
Do mesmo modo, por força do art. 135 do Código Tributário Nacional (CTN), as questões fiscais também ficam sujeitas à observância da "teoria maior". Segundo se infere desse dispositivo, as pessoas que têm funções de representação, gestão ou administração na empresa, desde que mediante a prática de atos com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto, são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes desses atos.
Casos comuns de confusão patrimonial são aquelas situações em que os sócios utilizam recursos da empresa para pagamento de viagens, contas de casa e outras despesas pessoais, não afeitas aos objetivos sociais da sociedade empresarial, levando ao endividamento irregular da empresa. Já o desvio de finalidade, por exemplo, ocorre quando a pessoa jurídica é utilizada para ocultar patrimônio dos sócios em fraude contra seus credores ou para a prática de atos ilícitos, como a lavagem de dinheiro obtido a partir de práticas ilegais.
Nessas situações afetas à aplicação da "teoria maior", diferentemente daquelas sujeitas à incidência da "teoria menor", o administrador não-sócio poderá ser alcançado pela desconsideração da personalidade jurídica e responder com seus bens pessoais por obrigações contraídas pela empresa a que estava vinculado.
Um exemplo recente de aplicação da teoria maior em relação ao administrador não-sócio é o caso julgado pelo STJ que afastou uma interpretação extensiva do art. 28, § 5º, do CDC, em que se pretendia responsabilizar o administrador não-sócio com fundamento na "teoria menor". O STJ ponderou que nesses casos de incidência da teoria menor não é possível que os administradores não-sócios sejam atingidos na desconsideração. Trata-se do mesmo caso acima citado, o REsp: 1862557/DF de Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, e publicado DJe 21/06/2021.
Em suma, vê-se que para os consumidores, trabalhadores e na defesa de questões ambientais a desconsideração da personalidade jurídica pode ser uma ferramenta útil com o fim de garantir o pagamento de dívidas em casos de empresas insolventes ou que se recusam a cumprir suas obrigações, mas que não deve ser usada de forma indiscriminada em casos em que não se comprovem os requisitos legais para sua incidência, ou mesmo, para atingir os administradores não-sócios.
Já para as empresas, é importante estar atento à observância das normas legais e estatutárias, evitando infrações que possam levar à responsabilização pessoal de seus sócios ou administradores. Esses deveres incluem, por exemplo, a manutenção de uma gestão ética e transparente, o que servirá não só para reduzir os riscos em relação aos sócios e administradores, mas, também, para consolidação de uma boa imagem e confiança perante o mercado e seus consumidores.
Em qualquer caso, em sendo reconhecida a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, surgirão consequências diversas tanto para os sócios ou administradores alcançados pela medida quanto para a empresa. Para os sócios ou administradores, a consequência mais importante é que terão seus bens pessoais sujeitos ao pagamento de dívida da empresa, e todos os demais efeitos prejudiciais que afetam os devedores de maneira geral, como, por exemplo, a penhora de bens e restrição ao crédito. Já para as empresas, as consequências negativas podem ir desde a perda da capacidade de investimento de seus sócios ou acionistas, como o prejuízo de sua imagem diante da confiança de seus investidores, inclusive, potencializando especulações sobre o encerramento das atividades.
Destaque-se, também, que do ponto de vista econômico e social existem repercussões relevantes. Sob este aspecto, os questionamentos podem ser os mais variados. Por exemplo, em que medida os efeitos positivos da desconsideração da personalidade jurídica para garantia de interesses vulneráveis (teoria menor) podem afetar o empreendedorismo e o investimento em novas empresas? Os consumidores e trabalhadores não se sentem mais encorajados a buscar a responsabilização dos sócios mesmo em casos em que não haja comprovação de desvio de finalidade ou confusão patrimonial? E o dano ambiental? Em que medida o interesse difuso da coletividade na manutenção de um meio ambiente hígido deve ceder diante de outro interesse difuso da coletividade, qual seja, o da manutenção de um cenário de negócios que garanta a livre iniciativa e o desenvolvimento econômico? Ou, sob outro viés, quais os efeitos positivos que a observância da teoria maior provoca à livre iniciativa? Afinal, quanto mais restrita a possibilidade de responsabilização do sócio pelos riscos da atividade desenvolvida, maior será o estímulo ao empreendedorismo.
Esses questionamentos ressaltam a importância de um equilíbrio na aplicação de ambas as teorias, pela ponderação dos interesses vulneráveis e a garantia de livre iniciativa e do desenvolvimento econômico.
Em resumo, a desconsideração da personalidade jurídica é um tema complexo e que requer uma análise cuidadosa de cada caso. A aplicação da teoria menor pode trazer mais segurança jurídica para os consumidores, trabalhadores e para tutela do meio ambiente, aumentando a responsabilidade das empresas em suas relações comerciais. Por outro lado, a observância da teoria maior fortalece a autonomia patrimonial das empresas e aumenta a segurança jurídica no interesse de um ambiente de negócio favorável à liberdade econômica, como elemento importante para a prosperidade e progresso do país.
Em qualquer caso, em se tratando de atividade empresarial, a complexidade do tema e as graves repercussões que podem provocar para empresas e sócios ou administradores recomendam a manutenção de um advogado especializado, com o conhecimento e experiência necessários para interpretar, avaliar o contexto e aplicar corretamente a teoria adequada ao caso, garantindo a proteção dos direitos dos envolvidos e proporcionando maior segurança jurídica nas relações comerciais.
Fontes: Código de Defesa do Consumidor, Código Civil, Lei de Crimes Ambientais, Código Tributário Nacional, STJ e TST.
Sobre o Autor: Kaio Alves Paiva é formado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU e atua como advogado especialista nas áreas fiscal tributária e empresarial. Ele possui mais 15 anos de militância na advocacia e é sócio do escritório Dantas & Paiva Advogados Associados. Você pode entrar em contato com ele através do e-mail contato@dantasepaiva.com.br ou pelo Instagram @dantaspaiva.adv
Palavras-chave: Desconsideração da personalidade jurídica, teoria menor, teoria maior, responsabilização dos sócios, insolvência, Código de Defesa do Consumidor (CDC), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Lei de Crimes Ambientais, Código Tributário Nacional (CTN), interesses vulneráveis, relações de consumo, relações trabalhistas, questões ambientais, livre iniciativa, empreendedorismo, segurança jurídica, advogado especializado.
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